sábado, 20 de abril, 2024
28.1 C
Natal
sábado, 20 de abril, 2024

Vigia da noite

- Publicidade -

Sanderson Negreiros  [ escritor]

Depois, fez-se silencio. As primeiras estrelas nasciam frias, cometendo uma distância inaugural e aflita. A solidão chegou ao espaço, em arcos voltaicos, devolvendo ao mundo uma sensação litúrgica de paz. Das árvores, mais perto, as sombras do dia fugiram – apenas as trevas cobriam o coração da árvore.

A brisa, pensativa e estrangeira, era a de costume – mas os pés de animais sonolentos marcaram o chão espessa claridade. Além, havia o rumor de pássaros noturnos, piando uma rouca fugacidade que só sabe a pássaros escuros. Em torno de nós a mansa opressão; a densa saudade de uma paisagem que não há; o canto mendigo de uma alegria interior.

Seres difíceis e saudáveis, dominávamos as leis da natureza; e concluímos a perpetuidade do gesto. De nós, além de nós, continuava a sombra de nós mesmos; a estranha beleza de uma despedida. Até que a aurora, isto é, a vitória de viver (farmácia da alma) chegasse e nos redimisse do sono ou do sonho.

Diante de nós, as serras azuis, suspensas e, mais adiante, um verde pastoral que nos encaminha para o reencontro, devolvendo-nos, no tatear das mãos, a vegetal surpresa de uma paisagem presa na distância. Lembras-te que me dizias que a lua sairia mais tarde? E viria bela, saudosa da memoria de campos antigos, profundos, do ontem inexplicável. Os carneiros balem e fogem. Pastor improvisado, encaminho o vento para os cabelos de quem, comigo, insiste em renovar a beleza da tarde.

Em seus olhos, repousam águas e rios construídos pelo sono. Suas mãos adivinham gestos. Sua palavra flora como planta silvestre. Vem a brisa do sul. Muita coisa, no decorrer das quentes estações, vai mudando, do sul para o norte. O norte é o longe, esse adeus inviolado. A única travessia.

É difícil ser testemunho de crepúsculo. Precisa-se para tanto de uma consciência explícita para coisas que estão além da mente, da consciência singular de todos os dias. O crepúsculo não é apenas cores se movimentando ao sol-posto. É o que te dei e tu me pediste: esta invenção, esta paz, esta certeza de que não caminhamos somente para a morte, mas que, de nós, muita coisa ainda restará para a vida. Para outras vidas e outros corações. Talvez um sonho que se plante e atingirá o centro da Terra.

O sereno da noite nos apalpa a pele. Lentamente, tocaiamo-nos na surpresa da noite maior. O estrelário, lá em cima, é aquela mesma serenidade infantil que só o amor dos olhos sabe consagrar e rever. A Via Láctea, mancha branca, espiralada, ocupa seu lugar no Universo em expansão. Não merecemos a aurora boreal nem a estrela polar. Somos vigias da noite, que por sua vez vigia o mundo. Nossas lanternas são de luzes vindas de um céu interior. A noite, nossa irmã.

II – Não adianta mais procurar nesse invariável rio da memória as lembranças das antigas noites de São João, fixadas na infância perpétua, impregnadas de uma aura inviolável, contempladas de uma poesia, onde a sinceridade do reencontro com essas fontes faz-nos um Bem misterioso, gratuitamente salvador.

Cada um tem seu mundo particular – não descubro a pólvora. Quero dizer: cada um traduz um mistério diferenciador, único em seu gênero, capaz de influir na harmonia do Universo. Portanto, uma noite como a de hoje grava no ser uma música tão sonante como aquela que habita as esferas, as grandes cavernas espaciais, no movimento contínuo das nebulosas. Somos também absolutamente relativos como a própria teoria explicativa de Einstein.

Não tenho saudade das fogueiras, cujas labaredas rangentes sempre me pareceram pássaros misteriosos, desses que aparecem depois da meia-noite e querem significar o medo do destino. Não lembro a casa grande e pobre, com um corredor que era sinônimo de ternura de viver; o crepitar do fogo da lenha verde, com aquele som de batalha e aquela luz de espanto. O ir e vir; o calor e o andar das personagens mais velhas. O riso claro dos meninos, o milagre de sons misteriosos, feitos de duendes e fetiche. Nada disso.

O que me vem profundamente à memória auditiva era a singular explosão dos fogos distantes. O ruído – quanto mais distante mais belo – de fogos suburbanos. O estalar no céu noturno, e muitas vezes invernoso, de foguetões poderosos, bombas altissonantes. A zoada, a fulguração desse barulho distante, ainda é a coisa mais bela da noite de São João.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas