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Viver e acreditar

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Cláudio Emerenciano
[ Professor da UFRN]

As recordações. Amálgama de um passado longínquo, que remonta à infância, e circunstâncias posteriores e mais recentes.  Vivências nas quais se manifesta o sentido da vida. Universo de sonhos, sentimentos, alegrias, tristezas, esperança e fé. O íntimo de cada ser humano. Convergências em que o espírito se aprimora no fluir do tempo. Entrega-se à sensação de que ele parou, estagnou. Renova o ânimo de quem não se sujeita a coisa alguma. Algo intemporal. Indescritível e insuperável: poema da vida. Natal nos últimos anos de 1940 e na década seguinte. O domingo de Aleluia. A Páscoa. A Ressurreição do Senhor. Geralmente o primeiro domingo de abril.

Da Igreja de São Pedro, no Alecrim, em sua torre, como numa espécie de campanário, a partir das 5:00 horas da manhã, padres poloneses transmitiam, por um sistema de som precário, mas potente para a época, “Jesus alegria dos homens” (da Cantata Nº. 147) de Johann Sebastian Bach. A cidade acordava com aqueles sons sublimes e geniais. Gravação de orquestra sinfônica e coro, provavelmente dos mais famosos da Europa. Manhã fria, enevoada, inebriante, que envolvia a cidade com um clima primaveril, agradável, que suscitava recolhimento e desarmamento de espírito.

A evocação não se exaure no domingo da Páscoa. Abrange toda Semana Santa. Que, para mim, começava na sexta-feira anterior com a Procissão do Encontro. A cidade cantava e rezava. Em frente ao Palácio Potengy, as imagens da Virgem Dolorosa e do Cristo com a Cruz nos ombros se encontravam. Invariavelmente, o pregador era o cônego Luiz Wanderley. Orador sacro, que comovia e se fazia emocionar com suas próprias palavras. O domingo de ramos. Já naquela época, muito antes do ecumenismo do Concílio Vaticano II, católicos e evangélicos convergiam com fé e contrição nas celebrações da Semana Santa. O reverendo Dr. Mateus, americano radicado em São José de Mipibú, amigo pessoal do arcebispo Dom Marcolino Dantas e do líder católico Ulisses de Góis, fundador em Natal da Igreja e do seminário Bereiano, era um dos artífices dessa harmoniosa religiosidade. A procissão do Senhor Morto, na sexta-feira, na qual, durante dez anos, eu assumi a personificação de São João Evangelista. Antecedia ao esquife com o punho fechado e o indicador apontando como sinal de silêncio e reverência. No domingo, bem cedo, os sinos das igrejas repicavam. A cidade, ainda adormecida, era despertada para o clímax de fé, alegria e esperança com a Ressurreição do Senhor. Curiosamente, apesar de chuvas ocasionais, que prenunciavam o início do inverno, nesse dia, além de ventos suaves, suportavelmente frios e céu deslumbrantemente azul, de poucas nuvens, uma claridade incomum envolvia a cidade. Lembranças ainda vivas.  

Roma. Domingo da Páscoa de 1993. Primeiro domingo de abril. A missa da páscoa foi assistida na Basílica de Santa Maria Maior. Em seguida entrei num táxi com minha esposa, Dadaça, às 10.30 horas da manhã. O carro atravessou parte da cidade antiga. Transpôs a muralha de Aureliano (construída para conter as invasões bárbaras) e nos deixou na Piazza da Santa Cruz de Jerusalém. Entramos na Basílica com o mesmo nome, consagrada em 320 d.C. e construída por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Ali estão relíquias que ela trouxe da Terra Santa. Principalmente pedaços da Cruz de Cristo e parte da inscrição de Pôncio Pilatos, em latim, hebraico e grego: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus” (I.N.R.I.). A missa foi celebrada por um cardeal brasileiro, há tempos radicado na Cúria Romana: D. Agnelo Rossi. Súbita e coincidentemente, órgão e coro interpretam “Jesus alegria dos homens”. Esplendor de genialidade. Seriam acordes dos anjos? A missa, antes da benção final, incorpora outra obra-prima de Bach: “O Magnificat”. A música é via espiritual. Sentimo-nos arrebatados e gratificados.

Da Basílica de Santa Cruz subimos a avenida até a Basílica São João de Latrão. Outra surpresa: dezenas de violinos e um coro harmonioso executavam a “Ave Maria” de Franz Schubert. Mais sublimação. Ali o Papa Inocêncio III acolheu São Francisco e doze frades, autorizando a Ordem Franciscana. Na véspera o Papa sonhou que sua Basílica de Latrão, igreja-mãe da Igreja, estava caindo, e um monge a sustentava. Então disse a São Francisco: “Na verdade, é por meio desse homem, santo e piedoso, que a Igreja será restabelecida em suas bases”.  Para estupor da Cúria Romana, o Papa desceu do trono, beijou os pés do santo e disse: “Ide com Deus, meus irmãos. E pregai a penitência segundo a inspiração do Senhor. E, quando o Todo-Poderoso vos tiver feito crescer, voltai a procurar-me e eu vos concederei, então, muito mais do que hoje”.

Essas emoções instantaneamente me transportaram para Natal. Senti que a religiosidade, testemunhada na infância, não diferia daquela que me deslumbrava em Roma. Mesmo quando mais tarde, na Praça de São Pedro, assistimos à benção “Urbi et Orbi” de João Paulo II. Fundiam-se os “mundos” da infância e da maturidade. Apenas as circunstâncias mudaram. A percepção do sentido da vida se alargava pela força da fé.

O crepúsculo chegou. Uma coloração violeta descia sobre Roma. Estávamos nos jardins da Villa Borghese. Uma orquestra sinfônica tocava o “Messias” de Haendel. Era um final glorioso para um dia imprevisível, puro, terno e inesquecível. Que, em meu coração, no âmago do meu espírito, imantou sentimentos germinados em Natal e, muitos anos mais tarde, revitalizados em Roma. Renovava-se, para mim e minha esposa, a dimensão humana e espiritual da vida e da fé. Festejávamos a Ressurreição.

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